A falácia do vernáculo

Há duas semanas participei de uma missa numa paróquia central da região onde moro. Todas as doxologias, orações, leituras e responsórios eram pronunciados em português. Entretanto, o pároco, que não é lá muito chegado a essas coisas, por algum surto cujo motivo ainda permanece inexplicado, resolveu convidar um pequeno coro de canto gregoriano. Como é de se esperar, este pequeno coro cantava em latim, o que suscitou uma comoção sensível na assembléia, a ponto de uma senhora sentada atrás de mim simplesmente esvaziar o "Pater Noster" entoado pelos cantores e só conferir sentido – com um sonoro "Ahn, agora sim" – ao Pai-Nosso que o sacerdote foi obrigado a repetir em português.
 

Gostaria de compartilhar algumas considerações descompromissadas sobre a questão do uso do latim e do vernáculo na liturgia, sem precisar dizer que nem de longe pretendo esgotar a discussão:

1. A questão da obediência. Vamos começar pelo básico: o latim é a língua ordinária das celebrações litúrgicas. é o tão famigerado Vaticano II que o reafirma, não apenas uma vez:

36. par. 1. Deve conservar-se o uso do latim nos ritos latinos, salvo o direito particular.

101. par. 1. Conforme é  tradição secular do rito latino, a língua a usar no Ofício divino é o latim.

Com isso não quero ir contra o uso do vernáculo, o que seria incorrer no erro que condeno, já que o uso do vernáculo é aprovado e incentivado pela Igreja. Entretanto não parece ser correta a postura que impera entre os leigos e, é triste dizer, mesmo entre membros do clero: há um completo desprezo pelo conhecimento das orações básicas em latim. Não conheço praticamente ninguém que saiba ao menos o Pai Nosso ou, ainda a Ave Maria em latim. As respostas da missa então, seria pedir um milagre. O fato é que a "nossa realidade" (essa expressão que costuma ser a salvaguarda de todas as bobagens dentro da Igreja) está patentemente contra o magistério. Simples assim.

2. A questão da catolicidade. Outro pequeno, mas relevante aspecto é o da manifestação sensível da catolicidade. Tal aspecto ganha maiores proporções se atentarmos para o fato, essencial, de que a dimensão simbólica (em seu sentido forte de unidade) não é periférica na ação litúrgica, mas constitui seu núcleo. Assim, ter toda a celebração litúrgica proferida num idioma único em todo o mundo não é apenas imagem ou simulacro de união mas é exercício de unidade e universalidade (catolicidade) para com toda a Igreja, inclusive àquela que nos precede e àquela que nos sucederá. Ignorar tal coisa é simplesmente desconhecer a liturgia e sua importância, o que, na maioria das vezes, é causa de sua subversão.

3. A falácia do entendimento. Penso que este ponto, que na verdade se desdobra em vários, seja o mais premente. O vernáculo serve para sustentar uma (várias) das teses mais falaciosas que se pode ouvir na Igreja. O primeiro movimento de quem, como aquela senhora da missa em que eu estava, despreza o uso do latim é o de defender o primordial entendimento daquilo que na liturgia se diz. Aqui está o primeiro erro:

3.1. Os mais sensíveis podem parar a leitura aqui e ir para o blog de algum padre cantor. Devo dizer: nosso entendimento não é necessário. Com isso não quero dizer que não precisemos (e mesmo não devamos) nos esforçar por aprender e entender a liturgia. Tão somente que nosso entendimento não é necessário no sentido lógico, isto é, não é condição de possibilidade nem da liturgia nem de seus efeitos. Encontramos aqui a distinção entre ex opere operato e ex opere operantis. A causa do recebimento da graça proveniente dos sacramentos depende do Cristo e não de nós. Novamente, não quero incorrer no erro que aponto e não posso cair na falácia de derivar daí a completa inutilidade do entendimento das palavras ditas nas celebrações. Só quero apontar inicialmente que para quem tem claro o correto sentido da ação litúrgica, o entendimento das palavras pouco significa.

Devo lembrar aqui um pequeno trecho do livro do Êxodo, que penso ser absolutamente esclarecedor. Em Ex. 4,23, Deus ordena a Moisés que diga ao faraó que deixe Israel sair das terras do Egito "para que ele Me preste culto". Por ora passo adiante da importante ligação que há entre a libertação do povo hebreu e a tarefa de prestar culto (é exatamente para prestar o devido culto que Israel precisa ser liberto). O que me interessa agora é que, por diversas vezes o faraó se nega a libertá-los, mandando que ofereçam sacrifício a Deus ali mesmo, no Egito ou, então, que vão mas deixem seus animais. Ao que Moisés responde negativamente dizendo:

Além disso, nossos animais virão conosco; nem uma unha ficará, porque é deles que devemos tomar o que precisamos para fazer nosso culto ao Senhor, nosso Deus. Enquanto não tivermos chegado lá, não sabemos de que nos serviremos para prestar nosso culto ao Senhor. (Ex. 10,26)

É o Senhor o sujeito da celebração. É ele o agente que opera os sacramentos. Assim, é ele quem dispõe do elementos e nós devemos nos colocar em posição de humildade e obediência, ainda que não saibamos (ou entendamos).

3.2. Temos aqui o outro aspecto da falácia do entendimento. Ele repousa sobre um ponto que não é nem logicamente nem empiricamente óbvio, a saber, que o entendimento das palavras (significante) garanta o entendimento de seus significados. Que se pergunte para qualquer assíduo frequentador da missa qual o sentido profundo – para além dos sentidos imediatos das palavras – da expressão "Felizes os convidados para o banquete nupcial do Cordeiro". Ou ainda qual o significado das diversas partes componentes da Oração Eucarística, cujas palavras todos entendem claramente. O fato é que, mesmo empiricamente, o uso do vernáculo por si mesmo não traz entendimento como que por mágica. Ao contrário, serve para justificar uma preguiça intelectual e aquela subversão acomodada que já mencionei anteriormente.

1 comentário A falácia do vernáculo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.