Unus, Duo, Tres – a solução para o problema do diálogo ecumênico e inter-religioso

 

O sempre muito bom Fratres In Unum, traduziu e postou um texto que não deixa de ser cômico, acerca do encontro de Assis, a acontecer em outubro próximo. Daí, derivaram-se muitas reações. De fato, a própria menção a um encontro inter-religioso já gera reações exacerbadas e, em sua maioria, contrárias à própria ideia de tal reunião. O assunto é geralmente pauta adorada entre os blogs e sites ditos tradicionalistas. Onde já se viu sentar e dialogar sobre o papel das grandes religiões na empresa da paz no mundo? Alguns deles nem são líderes de verdadeiras religiões! Eu também acho que deveríamos, como recomendava São Dom Bosco em relação a jovens alunos indisciplinados, negar-lhes até o olhar…

Pois bem, mas enfrentemos as coisas: e como ficam os dois problemas sérios que subjazem a isso tudo, a saber, o da divisão do Corpo Místico do Cristo – a falta de unidade plena entre os cristãos – e o da relação para com os “gentios”?

[CUIDADO, tradicionalistas! Citarei dois protestantes no mesmo parágrafo!!!] Isso me lembra o que dizia Kierkegaard a respeito dos malabarismos dialéticos de Hegel. Como se sabe, a dialética opera por um movimento triádico. Pois bem, como criticava Kierkegaard, esses senhores hegelianos pensam ser possível resolver os problemas só contando eins, zwei, drei, um, dois, três, em alemão. E como que por um passe de mágica, todos os problemas epistemológicos, éticos e metafísicos se dissolveriam no ar. Entre nossos ditos “tradicionalistas”, bastam uma ou trezentas citações de São Tomás que todos se convertem, os mortos se levantam e o leão vai dormir no covil do cordeiro. É o eins, zwei, drei “tradicionalista” que, obviamente, deve ser um unus, duo, tres.

O chato é que, como apontara Kierkegaard (agora me pergunto se incorro em pecado mortal por deliberadamente fazer doutorado sobre o pensamento de um protestante), a mera citação de conceitos ou excertos, bem como a confecção de malabarismos argumentativos, só faz mostrar a falta de honestidade intelectual diante do problema e, ao contrário do que se pensa, a falta de clareza e distinção. Esse é um dos males dos nossos tempos, que acomete a academia, mas também, de certo modo, o pensamento (tradicionalista) dentro da Igreja; diante de um problema teórico ou prático, enuncia-se um conceito (por favor, não em português. Latim, grego ou alemão, nesta ordem para tradicionalistas, ou na ordem inversa, para protestantes e filósofos pedantes de academia). obscuro e todos sairão com a falsa ideia da resolução instantânea.

Mas já que este interlúdio não solucionou a questão (e olha que até enunciei o glorioso nome do Aquinate), voltemos: o que fazer diante das diversas religiões que não se deixam reduzir e reconduzir ao Cristo? Vou fazer mais alguns comentários pra ver se o passe de mágica faz efeito…

Não só os “tradicionalistas” não têm uma boa resposta para além do unus, duo, tres, como incorrem eles mesmos numa situação um tanto embaraçosa. O que fazer com a figura do papa? Vive-se uma sorte de esquizofrenia em relação ao sumo pontíice: ele é venerado – constam imagens dele na barra lateral dos sites e orações e referências são feitas a ele – mas, simultaneamente, questionado ao limite da desobediência. Oscilam entre um sedevacantismo softcore, recorrendo por vezes a análises grandiosas sobre as características que legitimam ou não um pontificado, e uma fidelidade desconfiada. Então, agora são três os problemas: o ecumenismo, o diálogo inter-religioso (sim, há diferença: ecumenismo só se dá entre aqueles que professam ser cristãos e, portanto, estão no mesmo óikos (casa). Com todos os outros, há diálogo entre “casas” e “lugares teológicos” diferentes, e, portanto, um diálogo entre religiões) e o papa. Opa, 3! Olha o número mágico aí de novo.

O que ocorre, na verdade, é que não há outro modo de começar a resolver os dois primeiros problemas (os sérios) a não ser, pasmem, conversando. Há uma falsa ideia de que o papa, ao encontrar-se com os demais líderes religiosos, estaria abrindo mão da crença na superioridade de sua fé. Nada mais tolo. Seria possível fazer essa inferência se o Santo Padre se convertesse a outra religião mas, ao contrário, ao dialogar com os diferentes, o primeiro princípio inegociável é a afirmação da identidade, que é justamente condição de possibilidade da diferença. Isso sem falar que todos têm ao menos um inimigo comum, a saber, a secularização.

Por fim, relembro o que diz a Dominus Iesus (que “tradicionalistas” não conseguem, nem por infusão direta, ler direito):

 

Tendo em conta os valores que essas tradições testemunham e oferecem à humanidade, com uma atitude aberta e positiva, a Declaração conciliar sobre a relação da Igreja com as religiões não cristãs afirma: « A Igreja Católica não rejeita absolutamente nada daquilo que há de verdadeiro e santo nessas religiões. Considera com sincero respeito esses modos de agir e de viver, esses preceitos e doutrinas que, embora em muitos pontos estejam em discordância com aquilo que ela afirma e ensina, muitas vezes reflectem um raio daquela Verdade que ilumina todos os homens ». Prosseguindo na mesma linha, o empenho eclesial de anunciar Jesus Cristo, « caminho, verdade e vida » (Jo 14,6), hoje também encontra ajuda na prática do diálogo inter-religioso, que certamente não substitui, mas acompanha a missio ad gentes, graças àquele « mistério de unidade », de que « resulta que todos os homens e mulheres que foram salvos participam, embora de maneira diferente, no mesmo mistério de salvação em Jesus Cristo por meio do seu Espírito ». Este diálogo, que faz parte da missão evangelizadora da Igreja, comporta uma atitude de compreensão e uma relação de recíproco conhecimento e de mútuo enriquecimento, na obediência à verdade e no respeito da liberdade.

E aí.. agora já deu tempo?

4 comentários Unus, Duo, Tres – a solução para o problema do diálogo ecumênico e inter-religioso

  1. Lucas

    Muito prezado amigo Gabriel.

    Já não é mais o papa que goza de prerrogativa de infabilidade e sim a FSSPX. E uma infabilidade diferente da definida pelo CVI, pois não se restringe aquilo que é matéria de fé e moral, é ilimitada. É o próprio bom Deus que fala pela boca dos membros da supracitada agremiação. O que dizem, não importa o conteúdo e as circunstâncias, é inquestionável. Ora, pelo menos é o que parece para alguns de seus devotados seguidores, posto que quem ousa a questionar um posicianamento que seja de algum padre da FSSPX provoca-lhes uma ira cheia de paixão. Procuram justificativas mil e/ou minizam a importância do que foi dito.
    O papa se diz algo, mesmo que afirme antecipadamente que o faz de maneira privada, logo é crucificado. Não poupam um vocabulário nada caridoso, que dirá o devido respeito a quem ocupa o trono de Pedro. Se por outro lado um padre da FSSPX diz um absurso, mesmo grave, é malícia de modernista criticá-lo. O que admira é que Dom Fellay, que parece ser um homem ponderado, faça vista grossa, não tome a atitude que tanto se cobra da Santa Sé.
    Particularmente sou contra Assis II. Acho que só traz mais confusão onde ela já é excessiva, além dos abusos do último encontro. Rezemos por Bento XVI e por aqueles que esqueceram o que é caridade chegando aos limites da insubordinação. Criticas são compreensivas desde que não se perca a compostura.

    Abraço fraterno.

  2. G. Ferreira

    Caríssimo amigo.

    Você acerta na mosca: a infalibidade de que gozam alguns “tradicionalistas” supera qualquer empreendimento megalomaníaco. De fato, fazem parecer que são os únicos proprietários da ortodoxia, ainda que ela implique em estar à margem do sucessor de Pedro. É, como disse no texto, uma esquizofrenia. É realmente patológico.

    Quanto a Assis II, continuo achando que pode ser interessante no sentido de ser um passo adiante em relação ao tratamento dos problemas aos quais me referi no texto. Não tenho o mínimo receio que o papa Bento XVI esteja se afastando da fé ao fazê-lo. Veremos.

    Grande abraço.
    G.

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