De costas para o futuro …em direção ao Eterno

Um dos maiores teólogos do século XX, Hans Urs von Balthasar, no prefácio da obra The Drama of Atheism Humanism, do não menos brilhante Henri de Lubac, escreve que no registro da modernidade, toda sentença que contenha a palavra “Deus” é automaticamente desprovida de valor, ou seja, que tal palavra esvazia qualquer pretensão de sentido para espíritos modernos. Hoje, poderíamos dizer que não só a palavra “Deus”, mas as palavras “Igreja Católica” estão fadadas ao mesmo destino. Parece impossível a priori que um discurso que se pretenda carregado de sentido, fale da Igreja como algo sério e que possa legitimamente representar uma forma válida (ainda hoje) de leitura do mundo.

É a partir desse pano de fundo, uma eclesioclastia reinante, que a esmagadora maioria de comentários da imprensa (grande e pequena) sobre a vinda do Papa ao Brasil se forma. Num primeiro momento, só interessam as informações pífias sobre o seu cardápio ou sobre os protocolos do Vaticano, como elementos excêntricos que despertam curiosidade e repulsa. Posteriormente, com um desejo de interpretação “profunda” dos fatos, a mídia se volta para estatísticas (números de católicos no país, quantos dos que se dizem católicos acolhem as falas do Papa etc.), historietas (da infância “nazista” do pontífice, de seu papel como Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé que seria um eufemismo para o Tribunal da Santa Inquisição ou então basta ver capas e capas de revistas desvelando toda a história secreta do Vaticano e da Igreja Católica que é tão secreta e obscura que qualquer trabalhinho de imprensa semanal coloca à luz). E assim se constrói o imaginário e se “enforma” a população para a recepção do Santo Padre (para não falar de alguns teólogos que, carregados de ranços, por ora vociferam contra e por ora o adulam…).

Para além daquilo que é obviamente problemático ao se adotar simplesmente esse tipo de discurso para se falar de qualquer assunto, há uma terceira esfera de “análise” do evento Bento XVI que pulula em alguns meios de comunicação que se pretendem mais sofisticados: a que versa sobre a validade das idéias de Ratzinger e da Igreja (sem terem lido uma linha sequer do que ele escreveu). Assumo como exemplo a matéria principal da revista Carta Capital da última semana cuja capa exibe, sobre um fundo negro e vazio, a foto de Bento XVI de costas e aparentemente cabisbaixo com o grande título “De costas para o futuro”. Escolho tal matéria porque ela sintetiza todos os pontos acima apontados (contêm estatísticas, historietas e discurso sobre a validade das idéias da Igreja). O ponto alto da matéria está, a meu ver, já em sua primeira página:

Em termos práticos, levando-se em conta os objetivos do Vaticano, o que a realidade mostrará a Bento XVI é que são questionáveis os resultados da moderna ‘contra-reforma’ que ele mesmo gerenciou ao longo de quase três décadas.

O que a Igreja gostaria que a “realidade” entendesse, é que “futuro” por si só, não tem significado algum, e que este futuro que hoje nos é anunciado a partir de um presente egocêntrico, tende a ser fantasmagórico. Se como diz o então cardeal Ratzinger no documento Dominus Iesus, a Igreja nasce do mandato de Jesus Cristo de batizar todas as nações em nome da Trindade e “ensinar-lhes a cumprir tudo quanto vos mandei” (Mt 28, 20), a “realidade” à qual a Igreja deve voltar-se é aquela divina, não importando a que ela dê as costas. Independentemente de se concordar com ela ou não, o que está em jogo aqui é uma coerência interna – bem há muito esquecido em nossos tempos esquizofrênicos e contraditórios – cujos pressupostos a própria Igreja não se enxerga no direito de tocar, posto que ela é apenas depositum fidei, depósito da fé e não sua proprietária.

Afastar-se da mera temporalidade é para a Igreja, gesto de Amor pela humanidade que se manifesta na tentativa de voltar a ela com o intuito de conformá-la ao Eterno – ou qual seria o sentido de “venha a nós o Vosso Reino”? – ao invés de simplesmente concordar com ela de forma displicente. É querer elevar, de fato, o homem à sua maturidade perante Deus, superando a condição da qual fala São Paulo, que tão bem diagnostica nossa contemporaneidade: “para que não sejamos mais crianças, joguetes da ondas, agitados por todo vento de doutrina, presos pela artimanha dos homens e da sua astúcia que nos induz ao erro.” (Ef. 4, 14).

Ora, não foi essa mesma a citação-chave feita por Ratzinger na missa de início do conclave?

 

*
Abaixo, alguns links relevantes:

Biografia de Bento XVI no site do Vaticano (em português)
Biografia de Bento XVI na Wikipedia (em português)
Lista Bibliográfica exaustiva e Reviews de livros de Bento XVI (em inglês)
Página da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé
Site Oficial da Visita do Papa ao Brasil

G. Ferreira

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    G. Ferreira

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