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Um fragmento de Puntel sobre a Totalidade do Ser

2.1 Que se deve entender por ” totalidade do Ser?”

[…] Seria sem sentido, até absurdo, perguntar se a totalidade do Ser assim concebida “existe” ou se é apenas uma “representação”, um “conceito”, uma “ideia” ou outras coisas semelhantes. Estas perguntas brotam de um dualismo fatal que começou de forma decisiva com Kant: de um lado, admite-se, enquanto “ponto” que tudo determina, a subjetividade (a unidade sintética da apercepção, a autoconsciência transcendentalmente concebida) com suas representações, isto é, formas sensíveis, conceitos, ideias; por outro lado, são pressupostos “objetos”, ou seja, as (desconhecidas e não-cognoscíveis) “coisas-em-si”. Este dualismo, que constitui a quintessência da reviravolta “transcendental” de Kant, transformou-se no correr do tempo. No lugar da subjetividade com suas representações entra a linguagem com suas estruturas.

Há talvez poucos textos que contenham numa forma tão expressiva e tão acertada tanto uma crítica a este ponto de vista dualista quanto também ao mesmo tempo a formulação da contraposição, como a seguinte pequena passagem numa carta de Heidegger a Husserl de 22 de outubro de 1927 (Heidegger refere-se aqui à doutrina de Husserl da subjetividade transcendental, a que o fundador da escola fenomenológica atribui uma atividade abrangente de constituição): “O constituinte não é nada, portanto, algo e Ser – embora não no sentido positivo… Universal é por isto o problema do Ser relacionado ao constituinte e ao constituído” (HUSSERL, Hua, IX, 1962, p. 602).

Este dualismo, este “abismo” não é sustentável, o que se pode demonstrar de muitos modos. Apresenta-se aqui brevemente somente um argumento indireto. Se a “totalidade do ser” fosse apenas uma representação ou algo como uma ideia regulativa, como se poderia explicar a situação de que nós, enquanto falamos de representação ou de ideia regulativa, pressupomos justamente já sempre termos compreendido a diferença entre a “totalidade do Ser” enquanto representação (ideia regulativa) e a “totalidade do Ser” enquanto algo outro, portanto, não representação, não ideia regulativa? Mas se não tivéssemos “atingido” o “Ser mesmo”, a “totalidade do Ser mesmo”, com outras palavras: se não estivéssemos já sempre, se nos quisermos exprimir assim, “para além do puro conceito, para além da pura ideia/representação”, na “coisa” mesma, ou seja, se não tivéssemos já sempre – mesmo que implicitamente – captado a própria totalidade do ser, então, o nosso discurso sobre “conceito”, “ideia (regulativa)”, “representação” e outros não teriam o menor sentido, não teriam conteúdo algum. Isto mostra de forma conclusiva que, quando falamos sobre “a totalidade do Ser”, já sempre significamos e captamos a própria totalidade do Ser, isto é, que não permanecemos na representação ou na ideia regulativa “da” totalidade do Ser.

Poder-se-ia exprimir isso assim: a totalidade é-nos simplesmente dada, mas não no sentido usual, ingênuo, “empírico-atomístico”, ou seja, no sentido de que nós nos chocaríamos com “a totalidade do Ser” como nos “chocamos” com coisas novas (desconhecidas por nós antes) etc., quando justamente fazemos uma experiência. Que a totalidade do Ser é simplesmente “dada” no sentido de que é um elemento integrante da estrutura e do status ontológico do nosso pensamento. Se quisermos empregar de forma modificada uma formulação famosa de Kant, poderíamos dizer: a captação da totalidade do Ser é um fato da nossa razão, bem entendido, poderíamos precisar: o fato originário da nossa razão. Mas este “fato” de nossa razão não é outra coisa que um elemento central da estrutura de nosso pensamento e do próprio espírito. Esta compreensão, numa perspectiva determinada, já foi formulada no início da filosofia. Pense-se em formulações como: “anima quodammodo omnia”. Hoje talvez se pudesse exprimir esta compreensão assim: o espírito (o pensamento) é intencionalmente co-extensivo com a própria totalidade do Ser.

PUNTEL, L. “A totalidade do Ser, o Absoluto e o tema ‘Deus’: um capítulo de uma nova metafísica” in Revista Portuguesa de Filosofia, vol. 60 (2004), fasc. 2, pp. 297-327.

G. Ferreira

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