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Sobre Moral e Religião – alguns apontamentos

 

Há alguns dias o SnowBall, do ótimo Quebrando o Encanto do Neo-Ateísmo (que junto com o Luciano Ayan, faz um trabalho hercúleo contra a estupidez neo-atéia) fez um post no qual comenta os absurdos da campanha promovida por neo-ateus a fim de estampar propagandas anti-religiosas em ônibus de algumas capitais brasileiras (sobre este tema já comentei aqui).

Em um de seus banners, a campanha dos neo-ateus faz referência à famigerada citação de Os irmãos Karamazovi, de Dostoiévski (que eles só fazem parecer que não a compreenderam), dizendo que "Se Deus existe, tudo é permitido”. Tal afirmação é ilustrada por uma imagem da colisão do segundo avião nas torres gêmeas do World Trade Center.

Ora, a inferência à qual se quer chegar com isso é tola e não merece que nos alonguemos sobre ela. Basta dizer que a sacralidade da vida humana é ponto pacífico em qualquer concepção religiosa (para os mais apressados, inclusive naquelas em que havia sacrifício humano; ou seja, justamente por tal sacralidade), sem falarmos de tal sacralidade no interior do cristianismo, onde o homem, pelos efeitos da Encarnação, é elevado à participação da natureza divina (cf. II Pd. 1, 3-4). Se islâmicos ditos radicais quiçá pensam diferente, isto obviamente não pode ser generalizado para a própria crença e, muito menos, para a própria existência de Deus, como se ela legitimasse, per se, todos os atos humanos (invalidando, obviamente, até a noção de pecado enquanto um agir contra Deus, possível a um agente livre como o homem).

Assim, o que move estes pequenos apontamentos não é a tolice exposta acima, mas uma posição acerca da relação entre a dimensão moral e religião ou, mais especificamente, Deus, que costuma acompanhar a refutação das bobagens neo-atéias. Tenho visto recorrentemente tal posição, que extrapola o domínio do debate religioso e mesmo da teologia – e vai alocar-se no terreno da discussão filosófica –, em uma série de blogs e sites ditos tradicionalistas ou de índole apologética, seja da religião em geral ou do cristianismo propriamente dito.

Antes de mais nada, o que desejo aqui é refinar filosoficamente o debate até para que a discussão e a defesa das posições teístas e cristãs sejam filosoficamente mais robustas.

A tese a que me refiro pode se apresentar de duas maneiras, uma mais fraca e outra mais forte mas, a meu ver, erradas em suas duas formas, a saber, que

a) a não-existência de Deus implica necessariamente a impossibilidade de uma moral;

ou, ao menos

b) a não-existência de Deus invalida qualquer tentativa de uma moral objetiva.

 

Como se pode perceber, a tese de fundo que se expressa sob essas duas formas é a de que é Deus quem garante a moralidade ou, na expressão mais forte, a objetividade da moral. Obviamente, a asserção a) pode ser refutada empiricamente, Platão e Aristóteles que o digam. Assim, pretendo focalizar na expressão b) que não só é mais “forte”, mas que também aponta para uma discussão realmente mais séria acerca da moralidade.

 

1) SOBRE A NOÇÃO DE OBJETIVIDADE

A pergunta pela objetividade, sobretudo na ética, não só é algo recorrente mas está no centro daquilo que os gregos já chamavam de “saber prático”. Prova disso é a clara indissociabilidade entre o que hoje chamamos de “conduta privada” e “conduta pública”, ou entre ética e política no pensamento de um Aristóteles, por exemplo. Toda conduta – mesmo a “privada” – acaba por fazer referência a outros, direta ou indiretamente.

Mas a noção de objetividade não só não é tão óbvia, quanto não é unívoca (não tem apenas um sentido) na história da filosofia. Objetivo pode significar, em linhas gerais:

 

a) Existência independente de sujeitos: objetividade assim entendida pode ser descrita em termos de existência extra-mental e independente de entidades quaisquer (físicas ou, nos moldes do realismo clássico, intelectivas)

 

b) Intersubjetividade: mas objetividade também pode ser definida com o acento recaindo na intersubjetividade, ou seja, o fato de que dois sujeitos podem acessar a mesma e idêntica (inclusive numericamente) entidade. Ao menos teoricamente é possível diferenciar da definição anterior pela hipótese de que seria possível que um sujeito acesse exatamente a mesma representação na consciência de outro sujeito, da qual a existência de tal representação dependa (o fato de que, como alerta Frege, toda representação tem apenas um portador não invalida a possibilidade de pensarmos na hipótese do acesso de duas consciências a uma mesma representação em uma delas).

 

c) realidade: por fim, objetividade pode ser entendida como realidade, no sentido mais vulgar da palavra (e normalmente é a concepção mais vulgarmente adotada). Por realidade não entendendo simplesmente a atualidade discreta dos entes, mas a “posição” de tais entidades acompanhadas, sobretudo, da possibilidade de conhecimento sensível. É geralmente esta a noção de realidade designada pela palavra alemã Wirklichkeit.

 

Pois bem, quando se diz que sem Deus uma moral objetiva não é possível (ou como escreve meu caro amigo Snowball “o ateísmo implica necessariamente no relativismo moral ontológico” significando por “relativismo ontológico” a não-objetividade), qual o sentido de objetivo aqui?

A linha do Equador (ou seja, uma linha divisória horizontal que divide o planeta Terra em dois hemisférios) não pode ser entendida como real no mesmo sentido da própria Terra. O mesmo acontece com o centro de massa do sistema solar ou o eixo de rotação da Terra (e os números, para Frege). São objetivos mas não efetivamente reais, tais como a própria Terra ou o Sol. Isso quer dizer que não é porque não são efetivamente reais que não sejam objetivos; são objetivos nos sentidos a) e b), inclusive.

A hierarquia de bens na Ética Nicomaquéia de Aristóteles não é objetiva? Os argumentos a fim de sustentarem a pretensão de existência autônoma (isto é, extra-mental) das idéias platônicas não são objetivos? O dever kantiano como incondicionado não é objetivo? Sem falar do princípio de não-contradição tal como exposto na Metafísica de Aristóteles que tem, ao mesmo tempo, validade lógica, epistemológica e ontológica. Todos estes exemplos apontam não só para a possibilidade, mas para a realização – ou descoberta, isto é um outro assunto – factual de objetividades pela razão humana e que não admitem “relativismos” no sentido exposto acima.

Desse modo, não é evidente – e nem provável – que a objetividade na moral seja necessariamente dependente de Deus ou mesmo de um fator extra-mundano ou extra-mental.

 

2) SOBRE A ADESÃO À PRECEITOS MORAIS

Há aqui outro aspecto importante sobre a deliberação e a eleição moral. Vejamos o que diz São Tomás:

A vontade segue o intelecto, não o precede. Ela se aplica necessariamente sobre o objeto que lhe é apresentado como um bem que sacia totalmente o apetite, mas entre os bens que lhe são propostos por um juízo reformável, ela escolhe livremente. A eleição, portanto, segue o último juízo prático, mas que este juízo seja o último é a vontade que escolhe.

ST, I, 82;83.

 

Sem querer entrar a fundo na questão da escolha moral, só quero apontar um aspecto que parece fundamental na discussão sobre a objetividade da moral. Geralmente, a objetividade da moral, sobretudo quando filiada a Deus, é arrolada como uma espécie de constrangimento à decisão correta. Isto pode ser apresentado da seguinte forma:

(a) Deus é a fonte da objetividade moral;

(b) Deus existe;

(c) Existe uma moral objetiva;

(d) Deve-se aderir a ela.

De fato, como aponta o Doutor dos Doutores, se o intelecto apresenta à vontade o Sumo Bem, ela deveria desejá-lo infinitamente já que, assim como o objeto supremo do intelecto é a Verdade, o da vontade é o Bem. Mas, como lembra sabiamente o aquinate, a adesão a tal Bem (e o mesmo ocorre na Fé) é um ato da vontade. Com isso quero dizer que, mesmo se apontada a objetividade dependente de Deus, isso não é uma característica que leve necessariamente à adesão. Não é por acaso que o Cristo ou os próprios apóstolos nunca procuraram “deduzir” a moral cristã. Como bem lembra o rabino Jacob Neusner, o Cristo chama para si o papel de autoridade máxima, do próprio Deus. Assim, deve-se fazer o que ele diz não porque é o mais racional, mas porque é o próprio Deus quem o diz e o comanda. Sob o ponto de vista da argumentação, o Cristo está anos-luz de Aristóteles ou Kant. Contudo, o que ele ordena está infinitamente acima do que qualquer outro homem diz, posto que ele é Deus.

G. Ferreira

View Comments

  • Olá,

    eu publiquei este artigo no site: teismo.net

    :: Com as devidas citações.

    OBS: Ótimo post.

    Abraços

  • Gabriel,

    Lembro que a primeira vez que vi esse argumento dostoievskiano invertido foi na pena do Antonio Cícero em seu artigo de estréia no Estadão há alguns anos. O exemplo que ele usava era o do "sacrifício de Abraão" em vez das Torres Gêmeas.

    Porém, eu entendo a argumentação teísta usual sobre esse tema como sendo Deus o fundamento da objetividade no sentido de as normas morais serem universais e válidas para a essência humana. Em outras palavras, a moral como fruto de um direito natural originado na natureza humana, imutável e criada por Deus como tal.

    Daí a famosa frase de Sartre: "não há natureza humana porque não um Deus para criá-la". E a negação da natureza humana me parece ser um corolário do ateísmo mesmo quando não expressamente colocado. E, ainda, uma necessidade da antropologia atéia.

    Abraços

  • Caro Lampedusa.

    De fato, compreender Deus como a fonte e origem da objetividade da moralidade está de acordo com a fé que professamos. Contudo, não se segue daí que, do ponto de vista filosófico, não seja possível entabular um discurso ético sem referência direta a Deus como tal fonte. É óbvio que no nosso entender Deus mesmo é a causa, inclusive, da própria racionalidade e, assim, de suas categorias e princípios que regem o funcionamento de suas faculdades. Desse modo, Deus é , "de jure", princípio de toda a objetividade moral. Mas o que quis combater é a tese de que, caso não se introduza Deus no discurso moral, cai-se necessariamente num relativismo o que é, obviamente, falso.

    Um abraço e muito obrigado por mais um comentário. Visite sempre o blog e comente.

    G.

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G. Ferreira

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