Para estudar Filosofia – 1

 

Após mais de uma década estudando Filosofia na Universidade (tendo passado, inclusive, por três brasileiras e duas estrangeiras), não raramente converso com colegas que se encontram em diferentes estágios. Como é de se imaginar, nas conversas com pessoas mais iniciantes, há sempre algumas dúvidas ou erros bastante recorrentes. Pensando nisso, pedi a alguns amigos, brasileiros e estrangeiros, que me enviassem dicas e conselhos básicos para estudar Filosofia a sério na academia – nada generalistas ou de escopo muito amplo -, mas que teriam feito uma grande diferença caso tivessem tomado conhecimento deles logo no início (e talvez mesmo mais pra frente), ou seja, daquelas sobre as quais ninguém fala, mas que todos deveriam saber. Vou fazer então uma série de posts com tais dicas, num esforço de diminuir a distância entre estudantes e informações realmente importantes e úteis. O primeiro desses posts é com dicas do Prof. Ernesto Giusti (UNICENTRO).

*   *   *

A pedido do caro amigo Gabriel, deixo aqui algumas dicas que normalmente costumo passar para meus alunos no começo do curso. São coisas bem básicas, mas, que se não forem ditas, podem permanecer para sempre desconhecidas. Pressuponho aqui um leitor que é um iniciante em filosofia e pretende ler sobretudo em português

1. A primeira regra é: confie no especialista. Vivemos em uma época em que é quase uma ofensa pessoal saber mais que outras pessoas, mas isso existe, eu juro. Via de regra, seu professor de filosofia é a pessoa indicada para dizer o que ler, e o que não ler. Mas isso significa também que o melhor para lhe indicar textos de filosofia medieval é um professor da disciplina, não um professor de lógica. Pergunte. Se não tem ninguém próximo escreva um e-mail para um especialista, o pior que pode acontecer é ele não responder.

2. Aliás, saber o que não ler é tão importante quanto saber o que ler. Manuais de filosofia são normalmente tão úteis como uma bicicleta para um peixe. Histórias da filosofia idem. Leia uma boa história da filosofia no primeiro ano de sua formação, para ter uma idéia geral da cronologia, depois deixa-as enfeitando as estantes. Todas tem limitações. A do Kenny é das melhores. A do Reale, que faz muito sucesso nessas bandas, é muito prolixa e descritiva, e filosoficamente superficial, preferindo uma visão das árvores à floresta. As brasileiras, como de Marcondes ou Chauí, são para o ensino médio, e insatisfatórias e inadequadas para qualquer estudo mais sério.

3. A edição do texto filosófico que se usa faz toda diferença. O ideal é sempre recorrer ao original, mas isso nem sempre é possível, por falta de familiaridade com a língua original. Não dá pra dizer que é por falta de dinheiro ou bibliotecas, pois todos os textos clássicos estão disponíveis na internet. Mas procure sempre boas traduções. Uma boa regra é que traduções de editoras universitárias costumam ser boas. Traduções mais recentes costumam ser melhores que as mais antigas (compare-se as duas traduções disponíveis da Investigação sobre o entendimento humano de Hume para uma prova disso.) Traduções de bolso de editoras como Martin Claret, Edipro ou Escala são lixo, lixo. Muitas vezes, até, são adaptações de outras traduções sem o devido crédito.

4.  Se você procura bibliografia específica, normalmente você encontra isso na forma de artigos especializados. Páginas da internet de filosofia, voltadas para o ensino médio, são desaconselhadas. Blogs também. O mesmo vale, em geral, para revistas de divulgação que são vendidas em bancas de jornal. Estes podem ser úteis para ter um primeiro contato com algum tema ou autor, não mais que isso. Procure artigos escritos por professores e pesquisadores, e publicados em revistas especializadas. Elas normalmente estão disponíveis online. Infelizmente, mesmo nessas nem tudo que se publica é da mesma qualidade. Uma regra simples é sempre buscar revistas de filosofia. Muitas vezes, revistas de outras áreas, como direito, pedagogia, etc., publicam textos sobre filosofia. Fuja. Para saber se uma revista é de filosofia, você pode consultar a classificação Qualis, da Capes, ou verificar se ela é vinculada a um programa de pós-graduação ou graduação em filosofia (muitas revistas,por exemplo, estão alojadas em sites de universidade, o que sempre é uma garantia de um certo controle), ou ainda dar uma olhada no Conselho Editorial. Prefira revistas já estabelecidas, como Analytica, Kritérion, Manuscrito, Principia, Cognitio, etc. Artigos indexados internacionalmente costumam ser melhores. Se ele tem um link para o Scielo, ou um número DOI, isso significa que é indexado, e as chances de ser um bom texto são maiores.

Ernesto Giusti é Mestre (PUC-SP) e doutorando em Filosofia (PUC-PR) e professor de Filosofia na Universidade do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO). É autor de A Filosofia da matemática no Preisschrift de Kant (Fapesp/Educ, 2004), além de diversos artigos. Trabalha especialmente com Kant, Filosofia da Matemática e das ciências na Modernidade, Frege, Filosofia alemã e Origens da filosofia contemporânea.

G. Ferreira

View Comments

    • Prezado Gustavo,
      Obrigado pelo interesse. Clique no link Newsletter do menu e cadastre seu email. Um abraço.

  • Pueril negar o Reale e recomendar o Kenny, mas tudo bem. Deve ser ateísta.
    Martin Claret não é boa mesmo.
    Ahm, no geral, bacana.

    • Não costumo aprovar comentários anônimos; nada mais pueril que isso. Quanto ao Reale, use o espaço dos comentários para argumentar. É igualmente infantil bater o pezinho contra e não apresentar uma única razão.

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