Marcelo Gleiser, um abraço cósmico pra você

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Não é de hoje que sou extremamente favorável a que os pesquisadores da área de Humanas, em especial os de Filosofia, entre os quais me incluo, tomem como dever o conhecimento básico de História da Ciência e um tanto de Física e Matemática. Mas desde a leitura de certas coisas de R. Dawkins ou ainda das declarações cometidas por S. Hawking, tenho estado cada vez mais convencido que a necessidade do caminho em sentido contrário também é premente. E no último dia 13 de outubro, a entrevista concedida por Marcelo Gleiser à Zero Hora deu-me mais um motivo para aumentar o meu receio acerca do que acontece quando um cientista escapa do laboratório para falar de “tudo o mais”.

Não vou perder tempo explicitando minuciosamente as teses veiculadas na entrevista; por favor, leiam-nas no link acima. Quero me dedicar a comentar uma ou duas ingenuidades do professor do Dartmouth College:

1) Aprendemos que, para Gleiser, “a ciência tem 400 anos”. Por certo, o professor deve estar se referindo ao Novum Organon ou mesmo à física mecanicista da época de Descartes. Talvez a Galileu e Copérnico. Ou sendo mais generoso com o calendário de Gleiser, Newton. Pois bem, todos estes corariam ao serem indagados se a ciência – seja lá o que isso, sem nenhuma outra determinação, signifique. Gleiser não se dá ao trabalho nem de justapor “Moderna” – havia recém começado, portanto, com eles próprios. Não se pode admitir que um cientista e professor universitário cometa uma declaração dessa. Com isso, Gleiser só mostra desconhecer o tamanho da importância da Física e da Metafísica aristotélica, ao menos como condição de possibilidade de superação delas próprias, para todos estes nomes. O que dizer então da preocupação de todos estes “cientistas” em oferecer modelos cujo ganho último – igualmente almejado – era uma metafísica mais enxuta na qual seria possível abrir mão de uma enxurrada de universais e mesmo da causa final? Mas pedir que um cientista compreenda as relações entre as grandezas fundamentais da física cartesiana e o problema dos universais dos medievais (aquele período horrível de trevas) é, certamente, pedir demais. Do mesmo modo, ignora completamente a envergadura do método axiomático-dedutivo de Euclides que, de certo modo, ainda hoje condiciona o pensamento científico. Ou então, como pode ser a outra postura possível, a saber, a de descartar como “não-ciência” alguma tese explicativa pelo simples fato de que esta foi “superada”, é tão ou mais estúpida do que a primeira posição. Como entender, pois, uma afirmação dessas saindo da boca de um cientista?

2) Que o jornalista que o entrevistou seja estúpido e tendencioso, não há com o que se espantar. Por isso, não é propriamente uma surpresa quando este faz uma pergunta que já é uma tomada de posição:

A história da ciência é, sob certo ponto de vista, uma permanente conquista de terreno que pertencia à religião, no que diz respeito a oferecer explicações sobre o mundo. Porém, apesar da aparente vitória, quase todo mundo acredita em divindades, mas poucos são capazes de compreender a ciência por trás de tudo que os cerca. O que isso ensina sobre a relação da humanidade com a razão e com a fé?

Mas é um tanto constrangedor que o entrevistado concorde:

(…) Na religião, o que você não entende você atribui a uma divindade que explica ou que cria. Na ciência, o que você tem de fazer é duvidar sempre e tentar encontrar respostas que não dependam de ações sobrenaturais.

A visão de que a ciência compete com a religião pelor “terreno” explicativo é uma daquelas bobagens que se ouve do professor do cursinho e não se esquece jamais. Mas é isso verdade? Há pelo menos dois séculos (pelo menos!!!), é ponto pacífico, ao menos entre as pessoas que já leram mais do que dois livros na vida, que as questões fundamentais que regem a intuição religiosa movem-se em outro terreno, a saber, o do Sentido. Assim, mesmo quando a Teologia judaico-cristã vê em Deus a fonte de toda a criação, não quer responder com isso à questão sobre como as coisas vieram a ser, mas por quê? O Gênesis nunca pretendeu ser um livro de biologia ou de geologia, nem tampouco um Prozac avant la lettre como o faz parecer Gleiser em outra resposta:

É muito mais simples você lidar com o pensamento religioso do que com o científico. Porque o pensamento religioso tem um lado acolhedor que o científico não tem. (…) A religião de certa forma oferece um grande abraço para as pessoas, que a ciência não oferece.

3) Mas o melhor está contido na tese mesma que Gleiser pretende defender, a saber, a da “Ética Cósmica”. Ao ser perguntado sobre as consequências de sua afirmação sobre estarmos, enquanto vida complexa e inteligente,  muito provavelmente sozinhos no cosmo, ele afirma:

O universo é tão grande, a Terra é só um planetinha, o Sol é só uma estrela, até nossa galáxia é uma entre centenas de milhões. Há essa ideia de que quanto mais os cientistas aprendem sobre o universo, menos importante vamos ficando. E eu estou dizendo o oposto. Estou dizendo que quanto mais a gente aprende, mais importante a gente fica. Somos produto de tantos acasos, de tantos acidentes cósmicos, e mesmo assim temos capacidade de pensar, temos autoconsciência, temos capacidade de reflexão e de compreensão de quem somos. Isso torna a espécie humana não um acidente cósmico irrelevante, mas um acidente cósmico relevante. Enquanto estivermos sozinhos aqui, enquanto formos os únicos com essa consciência, temos uma responsabilidade cósmica extremamente importante, de preservação da vida a todo custo. O que estou propondo é uma espécie de moralidade cósmica, uma moralidade mais abrangente, em que passamos a ser guardiões da vida.

Em suma, o argumento desse bravo guardião universal, vai como se segue:

a) somos produto de acasos que desenvolvemos certa complexidade que nos permite pensamento e autoconsciência. Por isso

b) somos um acidente cósmico relevante.

c) Logo, temos uma responsabilidade cósmica de manutenção da vida “a todo custo”.

Chega a ser constrangedor ter que apontar uma coisa dessa, mas vá lá. De onde o professor pretende derivar esse “dever”? Ele é racionalmente justificável? Por que deveríamos ser guardiões de um “acaso relevante”? Se não há propósito ou finalidade alguma na vida sofisticada que aqui temos, por que este fetiche? Não gosto de ser o portador de más notícias, professor, mas o Universo em si mesmo não dá a mais mínima importância para a existência de uma vida autoconsciente ou, de fato, não dá a mínima para vida alguma. Portanto, somos “relevantes” para quem, para além de nós mesmos? Assim como a “Mãe Natureza” não está nem aí para a extinção dos pandas ou do mico-leão dourado da cara preta. Houve bilhões de anos no qual não existíamos e haverá mais outros em que não existiremos. Qual a justificativa racional para essa baboseira? E ainda “a qualquer custo” (!!!).

Ou seja, rejeita-se Deus, a causa final ou qualquer coisa que o valha, mas pretende-se justificar a possibilidade de assumir uma “responsabilidade cósmica” para com o Universo, essa grande coisa amorfa e estupidamente displicente. Nada mais egoísta do que o Cosmo (ironicamente, o “Universo” virou a entidade preferida à qual clamam e agradecem os modernosos: “Obrigado pelo dia, Universo!” Quem diria que um cientista não-supersticioso faria o mesmo).

Não é comovente? Prof. Marcelo Gleiser, é você quem precisa de um abraço.

13 comentários Marcelo Gleiser, um abraço cósmico pra você

  1. Emerson Moraes

    Como bem disse o professor Olavo, quando esses caras se metem a falar sobre temas de fora do seu domínio, usando este mesmo domínio como base para o ‘raciocínio’, eles acabam se tornando não os cavaleiros, mas uns verdadeiros CAVALOS do apocalipse.
    Muito bom seu artigo!
    Abraço.

  2. Pingback: O que Marcelo Gleiser ainda precisa entender sobre ciência e fé - Tubo de Ensaio

  3. C Minter Alvez

    Prezado Gabriel

    A partir do dia em que cientistas estabelecerem uma ‘lei da natureza’ eles poderão pensar em ser corresponsáveis. Até aqui tudo o que fazem é registrar num papel as leis que eles não têm condições de estabelecer. E se aproveitam delas para ganhar seus prêmios.

    Parabéns pelo artigo 100% correto.

  4. Rodolfo

    Tenho o livro Criação Imperfeita e nele consta literalmente em seu prefácio: “Após apenas 400 anos de ciência moderna, (…)”. Taí o moderna que fez falta. Vou tb a livrarias para ver se é só meu livro que está assim. E mesmo que não tivesse escrita a famigerada palavra, seu item 1 mostra um grande erro de julgamento sobre o Marcelo Gleiser, pois vários livros dele remetem aos grandes da filosofia grega e romana, por exemplo, e da importância que tiveram e ainda tem.

  5. G. Ferreira

    Prezado Rodolfo, obrigado pela leitura e pelo comentário.

    Em primeiro lugar, se você notou, o post é um comentário a uma entrevista – que está linkada no post, por sinal. Nada tem a ver com a possível formulação do texto dele em livro. Logo, o seu primeiro comentário não se aplica. Mas como você pode ver, o meu ponto principal não é a ausência do adjetivo “Moderna” simplesmente, mas a compreensão da ciência moderna em si mesma. Como eu digo no meu item 1, os mesmos que Gleiser aponta como iniciadores da ciência moderna não se considerariam como tais. Não se trata somente de Gleiser citar os “grandes da filosofia grega e romana”, mas de que a sua concepção de ciência moderna está baseada numa ideia de ruptura tão radical para com o que vem antes que, sem nenhuma outra determinação ou explicação, é uma ideia simplesmente errada. Não se trata, portanto, da querela sobre a “famigerada” palavra e nem de citações aos antigos, mas da compreensão da ciência em si mesma. E ele continua errando.

  6. Julius Caesar Maximus

    Acho que Gleiser se referiu à Ciência moderna, ao método científico…
    Quanto ao fetiche, seguindo a linha de raciocínio, se somos produtos do acaso, irrelevantes perante o Cosmo, mas adquirimos a capacidade de apreciar, compreender e proteger esse acaso que por enquanto só sabemos ter ocorrido aqui, devemos sim, fazê-lo a todo custo.

    1. G. Ferreira

      Ave Cæsar,

      Em relação ao seu primeiro ponto, o quepenso está no próprio texto:

      “Gleiser não se dá ao trabalho nem de justapor “Moderna” – havia recém começado, portanto, com eles próprios. Não se pode admitir que um cientista e professor universitário cometa uma declaração dessa. Com isso, Gleiser só mostra desconhecer o tamanho da importância da Física e da Metafísica aristotélica, ao menos como condição de possibilidade de superação delas próprias, para todos estes nomes.”

      Quanto ao segundo, você nao avançou nada em relação ao que disse Gleiser; simplesmente afirmou que sim, porque sim. Como disse, quero ver derivar desse quadro o “dever”, como Gleiser e você fazem.

      Abraço.

  7. João Simões

    Boa tarde Gabriel.

    Acho que ouve algum problema na sua análise ou interpretação do que o Gleiser escreveu, quando ele fala “Enquanto estivermos sozinhos aqui, temos uma responsabilidade cósmica extremamente importante, de preservação da vida a todo custo”, o que ele diz vai de encontro com o que qualquer religião prega, a valorização da vida, sinceramente não entendo sua revolta.

    1. G. Ferreira

      Olá, João,

      Obrigado por seu comentário.

      Penso que você não compreendeu o meu ponto. Em primeiro lugar não há revolta alguma. É uma questão de lógica: se não há nenhum motivo especial para a existência nossa ou do nosso planeta, também não há motivo para preservá-lo. Quando você diz que “qualquer religião” prega isso (e por isso Gleiser estaria indo AO – e não DE – encontro com elas), é justamente aí mesmo que está a diferença: as religiões pregam uma preservação porque reconhecem no Homem – e no seu planeta – uma criação sui generis e que preservá-los é uma tarefa legítima porque, em última análise, é preservar o próprio desígnio de Deus. Mas para uma perspectiva que não contempla esse aspecto – como a de Gleiser -, a fundamentação dessa posição fica por ser fornecida (coisa que patentemente Gleiser não faz).

      Um abraço.

  8. Beto

    Me parece que você foi excessivamente implicante com as declarações dele. Um pouco de boa vontade ao olhar o ponto de vista do outro vale bastante.

    Sobre os “400 anos da ciência”, é o velho problema que os historiadores enfrentam ao demarcar períodos históricos com precisão. Mas fato de o Gleiser mencionar o período em que viveram Galileu ou Copérnico como o início do que entendemos hoje por ciência não quer dizer que ele ignore os fatos citados por você sobre, por exemplo, o que diz respeito a Euclides. A ênfase do Gleiser nos 400 anos é para demarcar que houve, nesse período, uma notável solidificação do procedimento científico.

    Sobre a disputa de territórios entre ciência e religião, também noto uma implicância e até má vontade ao interpretar o que é dito. Vejamos: é fato que existem descobertas científicas que abalam certas declarações religiosas a respeito da realidade. Exemplos não faltam, desde o heliocentrismo até a teoria da evolução. Você pode até dizer que a relação entre ciência e religião é muito mais profunda do que uma mera disputa desse tipo, o que concordo. Mas nem a pergunta do repórter nem a resposta do Gleiser insinuaram que a relação entre ciência e religião se resume a isso. Apenas constataram o fato óbvio de que certas descrições científicas sobre a realidade contrariam certas explicações religiosas.

    Sobre a declaração do Gleiser em relação a uma ética cósmica e dever de preservar a vida, novamente você visivelmente implica de forma desproporcional. É notório que a declaração do Gleiser sobre o dever de preservar não tenha tido a intenção de ser uma conclusão lógica necessária a ser extraída de premissas rigorosas. É só uma reflexão sobre a importância que ele enxerga na vida consciente do universo e como é incrível que tudo isso tenha surgido por acaso, na visão dele.

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