Heidegger e Jaspers no tempo da universidade a sério

Entre os diversos temas tratados na longa correspondência – 155 escritos conservados, trocados durante 43 anos – entre Karl Jaspers e Martin Heidegger, um em particular me chamou a atenção: opiniões sempre sinceras sobre a qualidade dos trabalhos dos autores e, inclusive, do de terceiros. Aliado a um profundo senso de apuro intelectual e seriedade sobre o que significa fazer o trabalho intelectual como se deve, tais opiniões geraram momentos como estes, que devem ser lidos e saboreados, com nostalgia e esperança…:

Heidelberg, 21 de janeiro de 1921

Karl JaspersMeu muito estimado colega:

Poderia pedir-lhe que tenha a amabilidade de dizer-me sua opinião sobre o trabalho doutoral em Filosofia e a personalidade filosófica do Sr. Friedrich Neumann? Por proximidade geográfica, este senhor quer vir a Heidelberg para fazer o doutorado comigo. Em princípio, estou bem disposto em relação a isso. Mas tenho recusado a muitos cavalheiros posto que só quero aceitar um trabalho excepcional e não desejaria contribuir para que pessoas de pouco mérito ostentem o título de doutor em filosofia por uma universidade alemã. Sua opinião será para mim muito importante uma vez que tenho ouvido que você conhece esse senhor desde muito tempo e seu trabalho surgiu no seu círculo intelectual.

Por que não pode você mesmo fazer-lhe doutor?

Desculpe-me, por favor, por esta pergunta tão direta. Sei, por nossa única conversa, que você tem sobre essas coisas muitos critérios que coincidem com os meus.

Saudações cordiais de seu devoto,

K. Jaspers

Ao que Heidegger, entre outras coisas, responde:

Freiburg, Lerchenstr. 8, 22,1,21

Meu muito estimado professor:Martin Heidegger

Com sumo gosto dou-lhe informação, ainda que não por isso queira parecer que quero recomendar o senhor Fr. Neumann.

É o segundo semestre que o Sr. N. está aqui – não diria que o conheço, o que em seu caso não é fácil -. Não é que seja de uma natureza muito complicada, senão porque ele é totalmente instável, trapalhão e, quiçá, antes de tudo, inautêntico.

Quando chegou, durante o verão, entusiasmou-se totalmente com Husserl, cada trivialidade era uma revelação, cada formulação uma frase clássica, ele lia para Husserl os manuscritos, rescrevia-os e não se separava deles, planejava também um trabalho linguístico-filosófico. Ao começo deste semestre, algo deve ter ocorrido entre ambos; agora critica a Husserl radicalmente, toma minhas manifestações críticas puerilmente de forma unilateral. E dela não compreende quase nada. Tem um certo círculo de gente medíocre que reúne-se para conversar e que tem desejado aproximar-se de mim sem consegui-lo. Eles acreditam que com repetir as frases de minhas lições o conseguiriam. Não se dão conta de quão estreitamente os acompanho. Estão em meu seminário para principiantes sobre as “Meditações” de Descartes – até agora trata-se apenas de uma interpretação fundada, de um trabalho sólido – e um após o outro falam sempre, crêem-se dispensados de trabalhar seriamente e falam por falar. […]

Como no último semestre com as de Husserl, não há nada que aprecie mais do que minhas aulas, que ele não compreende. […] Eu lhe disse desde o princípio, quando citou seu nome, que não deveria acreditar que as coisas iam ser demasiado fáceis; e pensava precisamente na conversa que tive com você. Penso que o caso é fácil. Se o trabalho não me parecer suficiente, eu o recusarei nitidamente e lhe direi que é inútil que tente com você. Contudo, se ele, apesar de tudo, tentar, terá que ter o incômodo de recusá-lo. Eu já recusei quatro este semestre. Só mantive formalmente um; trata-se do Sr. Löwith, todavia, não sei o que faz e que resultado obterá.

Ontem Afra Geiger esteve em minha casa. Apresentou a Finke as coisas deste modo: a filosofia é muito difícil, agora gostaria tentar na história. Foi honesta e diretamente ao ponto, ainda que de maneira escandalosa para o Sr. Conselheiro Finke. Ela pretende fazer um trabalho de história da filosofia sobre a Idade Média. Eu lhe disse que era impossível aprofundar-se em um ano se não tinha uma preparação teológica (esta é a condição fundamental e o ponto essencial) e não conhecia Aristóteles nem Santo Agostinho. Ela me dá muita pena. Quero falar mais uma vez com Finke. Minha opinião sobre os estudantes de hoje, incluindo as estudantes, perdeu todo o otimismo: inclusive os melhores ou espíritos fanáticos (teósofos, que vêm instalar-se também na teologia protestante), seguidores de George e Similares, ou caem em uma ânsia enferma de leituras e em um saber de tudo sem saber nada bem.

Falta a compreensão genuína do trabalho científico e, por isso, uma força efetiva de perseverar, de renúncia e de autêntica iniciativa. Mas ao final a crítica excessiva é também um estorvo; sofro porque, com cada manifestação aparentemente positiva, suscitam-se falsas expectativas. Antes dos quarenta anos não se deveria ocupar uma cátedra. […]

Saudações cordiais de seu muito devotado,

Martin Heidegger

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