Células-tronco embrionárias e os mitos modernos

No mínimo desde Comte, aprendemos já no jardim de infância que nossos tempos modernos (ou pós-modernos, hiper-modernos ou qualquer coisa que o valha) são o ápice da humanidade (que por sua vez serão ultrapassados por nossos sucessores que, mesmo antes de nascer, já exibem sua gloriosa contribuição para nossa perfectibilidade). Assim, nossos conhecimentos e nossa ciência estão em tal patamar de “evolução” (ahn, palavra maldita que significa “progresso”, mas que estranhamente também significa “fim (télos)”, “bem” e “verdade”, tudo ao mesmo tempo) que nos arremessa anos-luz à frente de nossos pobres antepassados. Com isso, compreendemos também – nós, os gloriosos modernos – que esta ciência foi aos poucos tomando lugar de explicações toscas do mundo, baseadas em crenças horrendas que, vejam só, eram dogmáticas e completamente refratárias à qualquer tentativa de penetração do nosso órgão-mór, a Razão. E enfim, aquelas figuras interesseiras e tendenciosas que guiavam nossos antepassados através destas trilhas obscuras e danosas – os sacerdotes – foram substituídas pelos arautos do mundo novo, os cientistas.

Os cientistas merecem uma ou outra palavrinha. Sabe-se lá o porquê, os cientistas, ao adentrarem naquele recinto sagrado, o laboratório – o novo Santo dos Santos – revestem-se automaticamente de uma aura, imediatamente reconhecida pela sociedade, que por sua vez faz deles os Sumos Sacerdotes sobre os quais colocamos todas as nossas confianças. É sabido que os Sumos Sacerdotes entravam, uma vez por ano no Santo dos Santos para pedirem expiação de todos os males do povo, bem como de seus próprios. No entanto, os nossos mais excelsos sacerdotes são estranhos. Vejamos um exemplo:

Acabo de ler uma entrevista na qual um destes senhores cientistas, pesquisador de células-tronco, inclusive das embrionárias, comenta um certo embargo propugnado por um juiz, que, ao menos temporariamente, parece obstruir seus estudos ou o uso de seus resultados. Pois bem, este gênio, arauto da razão diz algumas coisas que incautos não percebem. Assim, vamos a elas:

1. A relação dos sacerdotes com o dinheiro foi sempre vista como problemática. Mas não a dos neo-sacerdotes. O próprio cientista entrevistado lamenta que a pausa nas pesquisas afeta muito os cientistas que recebem financiamento para suas pesquisas. É claro que você pensa na corrida contra o tempo empreendida por esse quase-voluntário trabalhando em favor da humanidade, para salvar milhões de vidas. Mas deveria pensar que os cientistas recebem milhões em verbas que vão ao encontro de sua ganância propriamente humana – como a minha e a sua. Chega a ser patético o fato de que a figura do idealista em busca da verdade esteja tão em desuso, mas não quando este idealista veste um jaleco branco numa sala branca. Os interesses são todos “científicos” e “em prol do desenvolvimento”.

O senhor cientista chega a dizer que a decisão judicial foi motivada por interesses eleitorais e de contexto, e não por uma convicção ética. Claro, a suspeita acerca de interesses não revelados deve pairar sobre todos, exceto sobre ele, nosso super-heroi casto e puro, quase um mártir irreconhecido.

2. Se este é o guardião da Razão, quero ser uma Besta. Perguntado sobre se achava que a interrupção duraria muito, o cientista responde (sou obrigado a citar):

Eu me sinto otimista e espero que seja coisa de alguns meses. O bloqueio judicial é muito condicionado pelas eleições deste outono, e portanto é possível que desapareça depois dele. O problema de fundo é a interpretação que o juiz fez de uma lei de 1996. Durante os próximos meses os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos EUA vão analisar a fundo como contorná-la ou reformá-la. Mas pretender frear essas pesquisas com minúcias legais não passa de uma fantasia mental. Quando aparecerem as primeiras terapias acabará a discussão: ninguém pode ser contra a cura.

O “argumento” é simples: vai durar pouco porque, quando ficar visível que funciona, “acabará a discussão”, afinal, “ninguém pode ser contra a cura”. Chega a me embrulhar o estômago ter que analisar o “argumento”.

Toda a possível “discussão” é, aos olhos do nobre doutor, uma questão que, de antemão já está resolvida. Há aqui uma premissa oculta que assevera que “se algo funciona, então seu uso está eticamente justificado”. Alguém aí precisa da explicação? Além da falácia que é o ocultamento da premissa, por si mesmo, ela é altamente discutível. É possível pensar em inúmeros artefatos ou medidas que “funcionam” mas são deploráveis quanto ao seu valor. E não me venha citando o fim nobre de “salvar vidas”. Se houvesse uma pandemia causada pelos ursos panda (o trocadilho foi absolutamente incidental), nada mais justificado do que exterminá-los. Mas ai daqueles que o propusessem. Exterminar uma espécie de bichinhos tão lindos, dóceis e indefesos em benefício dessa raça humana depravada, o que! Seria um meio inadmissível, embora para um fim desejável (segundo alguns, bem poucos).

A tática de remodelar o problema indesejável em torno de algo obviamente desejável é tudo, menos racional. Quem será contra a cura!?… Mas, bem, não era essa a questão, senhor. Mas, caso seja por aí que o senhor deseje ir, talvez a pergunta adequada seja: Quem será a favor da cura a qualquer preço?

 

PS: Nos artigos relacionados há um outro que comentarei depois. Adianto que seu raciocínio é de um nível que deveria fazer com que a cientista que o pronuncia perdesse o diploma… do pré-primário.

3 comentários Células-tronco embrionárias e os mitos modernos

  1. Carlos Eduardo

    Achei que o texto ficou muito infantil exagerando nessas ironias baratas.

    “O digníssimo cientista com sua aura de sabedoria trazendo seus mandamentos divinos para o, ooooh, bem da humanidade, blablabla”
    Começou a ficar ridículo…

    No fim, o argumento do cientista é falácia, sim.
    “Ninguém pode ser contra a cura” foi uma besteira.

    Agora, todo esse ataque ao cara e à comunidade dos cientistas foi complicado.
    São esses “neo-sacerdotes divinos” aí que aqueceram seu chuveiro, te vacinaram contra vírus do mal, criaram o motor que o seu carro ou ônibus usa pra te levar ao trabalho…

    E de vez em quando eles fazem mesmo umas cagadas com o planeta e com a fauna só pelo bem dessa “raça depravada humana”.
    Como quando arrombaram uma floresta e rio com animais lindos pra concretar uma usina hidrelétrica pra fornecer energia pra que você poste em seu blog.

    Ou, melhor colocando:
    “Exterminar uma espécie de bichinhos tão lindos, dóceis e indefesos em benefício dessa raça humana depravada, o que! Seria um meio inadmissível, embora para um fim desejável (segundo alguns, bem poucos).”

    Esse argumento anti progresso cientifico só funciona mesmo vindo de que está vivendo no meio do mato.

  2. G. Ferreira

    Prezado Carlos Eduardo

    Quanto às críticas sobre o estilo do texto, nada posso fazer. Apenas lamento que você tenha dado mais ênfase ao meu estilo pessoal – se não gostou, não leia – do que ao argumento. Coisa típica de quem não sabe ler um texto argumentativo.

    Quanto ao ataque à comunidade científica, seu argumento é também uma piada. Nenhum dos críticos da mentalidade cientificista – de Rousseau a Heidegger – é crítico dos benefícios trazidos pelas ciências. Não confunda as coisas. De modo algum se trata de crítica ao “progresso científico”, mas ao fenômeno social e intelectual tão bem estudado e documentado da redução da racionalidade à racionalidade instrumental científica.

    Abs.

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